A romagnola Giulia Di Silvestro empresta seu olhar para entender este panorama.
Sempre no intuito de partilhar experiências de recém-chegados da Itália no Brasil e no mundo, a comissão Nuovi Arrivati traz ao site do COMITES entrevistas exclusivas com pessoas que partilham seu olhar e repensam sua identidade onde chegam.
Quem nos traz um paralelo entre a moda no Brasil e na Itália é Giulia Di Silvestro. Natural de Rimini, na Emilia-Romagna, nossa entrevistada mora há oito ano no Brasil, onde estudou Economia e Políticas Públicas pela Universidade de Padova e pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Unido à sua formação e ao seu trabalho como ensino da língua italiana, ela sempre teve grande paixão pela moda, que de concretiza por cursos, seminários, palestras e história deste tema.
1- Antes de chegar ao Brasil, o que definia a moda para você?
Sempre tive um grande interesse pela roupa. Desde criança ficava fascinada vendo as roupas e os tecidos. Ia – como todas as crianças que se tornam “brechozeiras”– visitar o armário da minha vó e experimentava todas as roupas da minha mãe. Além disso, minha avó fazia uns trabalhos como costureira e no nosso vilarejinho tinha muitas costureiras de bairro, assim passava muito tempo no meio de tecidos. Crescendo, tornei-me um tanto obcecada por roupa, escolhia a roupa e as cores que eu ia vestir no dia seguinte na escola. Era um ritual, levado muito a sério por mim, pois achava que a partir daí eu teria sido aceita e olhada.
A adolescência foi o período mais difícil, pois parecia que nada daquilo que vestisse fizesse sentido, tinha um lance de corpo, uma dificuldade de aceitação, tinha também uma vontade de espremer o meu corpo para que entrasse nos padrões ditados pela moda naquele momento. Por fim, na época da universidade, quando a briga com o corpo se acalmou um pouco, entendi que roupa era uma ferramenta de expressão e comecei a me sentir eu mesma nessa segunda pele.
Acho que moda então, para mim, é uma sensação que deriva desta segunda pele que escolho/escolhemos vestir, é algo de íntimo e social ao mesmo tempo. Íntimo porque é muito perto da minha pele, social porque através dela passa o zeitgeist, o tempo social que vivemos.
2- Quais movimentos italianos dos anos 80 para cá fizeram a diferença na Itália?
Talvez um movimento muito interessante que explica parte da crise cultural da Itália, nos anos 80, foi os “Paninari”. Este foi um fenômeno cultural que ocorreu na Itália nos anos oitenta, especialmente em Milão. Foi um movimento juvenil caracterizado por um estilo de vida baseado na moda, na música e no consumo de alimentos rápidos, especialmente panini (sanduíches).
Os “Paninari” eram jovens que pertenciam principalmente às classes mais privilegiadas da sociedade italiana, com dinheiro para gastar em roupas de marca, tênis e acessórios caros. Eles se reuniam em locais públicos como bares e lanchonetes para exibir suas roupas da moda e conversar sobre as últimas tendências. O movimento teve um grande impacto na moda italiana da época, influenciando o design de roupas e acessórios. As marcas mais populares entre os “Paninari” incluíam Armani, Benetton, Fila, Nike e Timberland. No entanto, o movimento também foi criticado por ser visto como uma expressão de superficialidade e ostentação em meio à crise econômica e social que a Itália enfrentava na década de 80. Apesar disso, ele continuou a existir até o final da década e deixou uma marca na cultura popular italiana.
De maneira geral, acredito que os anos mais interessantes da moda, realmente disruptivos, são os anos noventa. Assim como na realidade, cria-se uma cisão muito forte entre a velha guarda do mainstream e a nova geração de estilistas que sentem viver num mundo em que já não existem certezas e em que todas as formas de expressão pessoal, mesmo as mais íntima, pode se tornar fonte de dor e, em alguns casos, de morte. Nesses anos vivemos o fim da guerra fria, os conflitos de Kuwait, Chechênia, Iugoslávia e Kosovo, além da presença forte da AIDS.
Os primeiros a mudar radicalmente as coisas foram um grupo de estilistas japoneses que começaram a desfilar em Paris na década de 1980: Rei Kawakubo ,da Comme Des Garçons, Yohji Yamamoto e Issey Miyake. Os pioneiros da moda japonesa exploram sua própria forma de minimalismo, que se baseia fortemente na abstração e na rejeição do corpo feminino. No contexto de suas criações, o corpo serve de andaime para gigantescos vestidos esculturais e é incorporado na forma de uma representação abstrata dentro do design da própria roupa.
A contribuição dos estilistas japoneses para a história da moda é fundamental, pois são a primeira grande rejeição aos ensinamentos dos grandes, são os construtores da primeira rota de fuga possível do passado e a demonstração de como ainda é possível construir algo novo.
3- O que te encanta ou decepciona na nossa moda?
O panorama de hoje é bem complexo no mundo da moda. Por um lado, existe a internet e o Instagram virou uma grande loja, um centro de comparação de imagem contínuo, causando estresse e ansiedade; pelo outro lado tem sempre mais ferramentas e possibilidade de escolha daquilo que faz sentido vestir e muitas opções até para escolher algo que fuja do padrão. Existe mais liberdade e mais escolhas.
O que me encanta, no Brasil, o uso sem vergonha da cor. Sabe aquele meme: “Não seja blasé? Seja emocionado?”, pois bem acho que existe emoção na vibração das cores aqui, cores chapadas e super saturadas.
Uma coisa que me encanta também, é a relação com o corpo que eu acho – falando do meu círculo e da minha bolha– mais relaxado. Existe aqui, ao meu ver, uma aceitação do corpo maior, que se penso nas minhas amizades na Itália, não existe.
O que me decepciona, é a dificuldade da moda brasileira de ver e de expressar o poder dela através das coisas que conversam com elas. Ou seja, o Brasil ser dono da sua própria moda, dos seus próprios códigos. Percebo que o mercado é monopolizado pelos códigos europeus, mas acho que se adentrar mais na própria cultura, conversar com quem é brasileiro, conversar mais com o que está dentro; não com o que está fora.
4- Em termos de sustentabilidade e uma moda renovável, o que Itália e Brasil podem aprender um com o outro?
Acho que o tema da sustentabilidade está difícil em qualquer parte do mundo, porém, acho que aqui vejo muita mais vontade e possibilidade de consumir. Por exemplo, se pensamos que podemos parcelar compra de roupa ou de calçado, estamos vendendo a ideia de que você pode comprar qualquer coisa mesmo não podendo. Então acho que como primeira coisa diria que parcelar, proporciona um consumo mais impulsivo e ilusório. Por outro lado, parcelar pode ajudar a comprar uma peça cara que vai durar por muito tempo, ai acho que faz sentido, pensar em comprar coisas duráveis.
Uma coisa que faço muito é garimpar em brechós, às vezes acho coisas bem legais, e bem duradouras; ou usar aplicativos, como Enjoei, Repassa, Troc, entre outros. Aqui no Brasil, como na Itália, há muitos.
5- Quando você garimpa nos brechós paulistanos o que busca? Quais suas descobertas mais interessantes?
Acho que brechó de igreja são os mais maravilhosos, escondem muitas coisas legais. Com o meu trabalho de professora de italiano, antes da pandemia, ia muito a pé pela cidade e achava brechós incríveis em lugares inusitados, às vezes dentro de garagem ou bairros distantes. Normalmente procuro por tecidos mais naturais tipo algodão, seda, jeans etc., e normalmente busco peças que estão em bom estado com a ideia de que sobrevivam por mais tempo.
Entrevista: Isadora Calil, Comissão Nuovi Arrivati